MONTANHAS, RIBEIRAS E FOGO:
FUNCHAL
Cinza
Atravessamos uma ribeira por um viaduto. À volta tudo é castanho-negro. Era o primeiro contacto com a destruição provocada pelo fogo dos dias mais quentes de agosto de 2016. Era como uma janela que se abria sobre uma paisagem calcinada, um pesadelo entre dois túneis, na aproximação à cidade do Funchal. Pouco depois descíamos uma rua. A um primeiro olhar parecia apenas estarem queimados alguns terrenos cobertos por vegetação, parentemente abandonados, um ou outro quintal. Tudo ao redor estava intacto. As casas numa aparência normal. Um dia de sol sobre os telhados e as paredes brancas. Descemos um pouco mais. Observamos agora, com estranheza, casas de onde o fogo se aproximou.
Como era possível aquela destruição quando tanto em redor estava impoluto? Mais abaixo na rua o cenário é de uma catástrofe mais afirmada. Há casas completamente arruinadas. O negro domina. Os detalhes das texturas revelam a força avassaladora das temperaturas extremas. Estávamos num dos locais de maior devastação destes dias de inferno que varreram um território em aproximação ao centro de uma cidade. Mas o fogo ali era ainda enigmático.
Entramos no logradouro de uma habitação destruída e avançamos para um muro que limita a propriedade. Esse muro está construído sobre uma falésia. Olhamos para baixo e apenas vemos uma paisagem negra, consumida pelo fogo. Estávamos defronte a ribeira de João Gomes, a mesma que
atravessáramos em velocidade, pouco antes, em direção à cidade. O desenho tomado pelo fogo começava a ficar mais claro. Avançava pelos espaços onde dominava o verde, pelas paisagens não construídas, onde não era possível a edificação. O fogo tomava como corredor os espaços da natureza
intacta junto à escarpa e onde havia habitações avançava sobre estas. Um inferno foi observado naqueles momentos de labaredas a surgirem violentas, imparáveis, num dia tórrido invulgar ali. A dança do fogo pode ser explicada, parcialmente, por questões geográficas, de ordenamento do território, de ventos fortes e irregulares em dias de temperaturas invulgarmente elevadas, mas não deixa de haver aleatoriedade no fenómeno, nas progressão das chamas.
Fixação
A Madeira é uma montanha que se ergue do mar. Quando, hoje, lemos uma carta topográfica da ilha, imediatamente percebemos a presença dominante dos grandes declives e a quase ausência de terras planas, particularmente junto ao mar. Pelas suas escarpas e por um clima mais instável e “duro”, a costa
norte terá sido excluída da tentativa a para construção de um porto. A confluência das ribeiras de São João, de Santa Luzia e de João Gomes, com grande proximidade entre si, num solo de declives pouco acentuados, criavam as condições de um bom lugar para o estabelecimento de uma comunidade. Isso
também deve ter sido percetível para os primeiros navegadores que terão circunavegando a ilha em busca de um ponto de atracagem e, depois, para a fixação permanente. Pensamos nos primeiros colonizadores, na instalação das primeiras comunidades humanas, no erguer dos primeiros edifícios
depois de apontado o plano para o desenho incipiente das primeiras ruas. No século XV começava a ser edificada a principal cidade da Madeira.
O Funchal é uma cidade que não se deixa esmagar pelas montanhas, que tem sabido conviver com a sua brutal dimensão. O núcleo mais antigo da urbe está voltado para o mar; o motivo da opção por este lugar
terá sido esse ponto de distância às montanhas, ao mesmo tempo que a elas se ligava pela presença da água que vinha das suas alturas e abastecia a cidade. As levadas são um notável exemplo construtivo desta singular civilização. Uma marca de enorme força no desejo de colonizar e habitar um território difícil.
Habitar
Na cidade monumental, histórica, havia a tradição da construção de torreões nas casas mais nobres do centro da cidade. Para além de alguns destes torreões que permanecem, percebemos, atualmente, que quase não existem edifícios altos, de habitação coletiva, e que a cidade se estende, se espraia e eleva, na direção da montanha. Há esta tradição de edificar naquele perímetro urbano que, de algum modo é contraditória com os solos exíguos, que poderiam sugerir uma rentabilização vertical do edificado. Mas também pode parecer óbvio que aquelas terras, mesmo nas cotas baixas, não suportariam, por diversos motivos, técnicos e de interpretação do anfiteatro, construções em altura. Também poderá ter havido, historicamente, a falta de investidores para essas construções ou uma política municipal restritiva nesse sentido. De qualquer modo cedo percebemos que, à medida que nos afastamos do coração da urbe e subimos as cotas de implantação, maior será a carência económica das populações. Não deixa de haver, no entanto, exceções a esta regra. Mas, curiosamente é neste perímetro de maior pobreza que podemos observar alguns exemplos muito interessantes de arquitetura popular contemporânea, feita sem projeto, nem arquitetos, que atualmente continua a exibir soluções muito qualificadas para a resolução de problemas espaciais concretos. Há uma certa constância nos modelos de edificar no Funchal. Em muitos casos lemos o trabalho sobre o ínfimo detalhe, particularmente na articulação com os terrenos inclinados e as vias de circulação. Esse detalhe existe em muitas construções, por vezes sublimes, mesmo que com materiais pobres. A cidade atual é feita desta teia de relações entre o centro e a periferia, entre as cotas baixas e a aproximação à montanha.
Terra
As ribeiras de São João, de Santa Luzia e de João Gomes são a incursão de Natureza na malha urbana, trazem a montanha, a expressão geográfica mais forte e intensa da Madeira, para o centro da cidade. As duas últimas tragédias foram transportadas pelas ribeiras. Nas cotas baixas permanecem as obras de regularização das paredes e solo dessas linhas de água. É ainda o resultado de uma intervenção ditada por essa tragédia maior que foi o dia 20 de Fevereiro de 2010, quando chuvas inusitadas se transformaram em caudais destruidores. Curiosamente foram as ribeiras, com as suas paredes seculares,
construídas em pedra, que melhor resistiram aos violentos caudais. O problema não estava nas ribeiras, mas em situações pontuais em que, a montante, se construiu no seu leito de cheia. Essas obras de betonagem das paredes, depois de concluídas, certamente não vão evitar cheias maiores, com aquelas
que aconteceram. Haverá sempre tragédias que não se vão poder evitar, que vão ser imprevisíveis, é o que nos diz a história do planeta que habitamos e do povoamento humano dos lugares. Mesmo depois das obras, as ribeiras do Funchal vão continuar a estruturar a malha urbana da cidade, como sempre o fizeram, mas deixarão de ser uma referência de Natureza no coração da cidade. Daí advinha a sua força, o seu singular carácter telúrico. Está em apagamento essa tão forte memória, essa marca de uma cidade antiga, sobrevivente. Uma das suas mais fortes marcas identitárias. Agora é como que cortado um pacto que se estabeleceu com a Natureza há séculos atrás, no período da fundação da cidade.
Desenho
Trazer o desenho para uma postura mais ativa de defesa ‘contra’ a Natureza. Temos que, permanentemente, procurar soluções de adaptação. Mas sabemos que há situações que são de evitar. As cheias podem regressar, o fogo pode voltar. A vegetação vai voltar a crescer nas ribeiras, nos seus
declives de mais difícil acesso. E esta vegetação é necessária para a fixação das terras e das penedias. Este é um dos fatores mais seguros para controlar a erosão. Ao mesmo tempo “vegetal” é sinónimo de vida, de nichos ecológicos ricos e de biodiversidade. Não será pela betonagem de superfícies que se vão
evitar tragédias futuras, mas por uma muito maior sabedoria aplicada ao local de construção e às próprias formas e modos de edificar. A arquitetura tem de ser pensada de modo diferente, de modo mais ativo na defesa contra as intempéries. Não se pode lutar contra a Natureza, mas saber interpretar as suas
dinâmicas de mudança, o seu carácter evolutivo, saber ler os sinais que ela nos dá. Todas as espécies biológicas procuram formas de equilíbrio momentâneo num meio de grande complexidade e dinamismo. A arquitetura tem que ter uma plasticidade evolutiva e o desafio do desenho integrador e de diálogo com as várias forças que se jogam na ilha da Madeira. Compromisso e cumplicidade no habitar. O respeito pela natureza específica do lugar. Se a expressão de fenómenos naturais é inevitável, ciclicamente, as suas consequências podem ser menos nefastas se a ocupação do território e as formas arquitetónicas forem desenhadas com o rigor que deriva de um olhar atento e uma investigação cuidada.
Defesa
O antigo paiol é o mirante de onde olhamos ao longe as áreas queimadas, os lugares, um a um, onde o fogo se insinuou na malha urbana. Parece que adivinhamos a sua progressão ao redor da grande cidade, como uma dança trágica de labaredas aleatórias ocultadas por um fumo denso, um fogo poderoso e sem artifício, verdadeiro. Mas, dos relatos escutados, e das imagens que nos foi possível observar, depreendemos que houve uma grande aleatoriedade na evolução do incêndio. O calor era imenso e os ventos irrequietos, repentinos, revoltos em direções improváveis. Percebemos que não haveria corpo de bombeiros capaz de combater esta realidade. Como pôde então ser contido o fogo no seu avanço sobre o centro da cidade? Questionamo-nos depois de concluído o reconhecimento pelo perímetro negro ao redor da cidade.
Deste antigo paiol vemos a cidade a desenvolver-se até às cotas mais baixas, ao local onde tudo começou no século XV. O Funchal foi a primeira cidade do além mar, do movimento de conhecimento, reconhecimento e globalização de toda a Terra que ainda hoje não terminou. A cidade sobreviveu a mais uma tragédia. A 20 de fevereiro de 2010 nada poderia ser feito naquele momento, os erros de construção, de planeamento urbano ou da ausência dele, já tinham sido realizados ao longo de muito tempo. A água resultante das chuvas tinha que chegar ao mar e fê-lo com o seu enorme poder destruidor. O fogo recente foi uma tragédia diferente. Não nos vamos deter sobre a sua origem, mas sobre o seu desenrolar e domínio. Foram os madeirenses que controlaram uma tragédia de proporções bem maiores. Quem estava na cidade naquele dia 15 de agosto sabia que o fogo podia avançar sobre o centro histórico da urbe. Essa hipótese estava severamente equacionada. A população começou a juntar-se junto ao mar. As entradas e saídas da cidade, ruas, avenidas, vias rápidas, estavam bloqueadas pelo tráfego intenso e desorientado.
Enquanto isso, na periferia, nas faces de avanço do fogo, incêndio era combatido com o espanto perplexo e o medo de quem o enfrentou na defesa das suas habitações, com meios que eram o nada de mangueiras de rega, baldes de improviso e coragem. As esses homens e mulheres que habitam os limites altos da cidade se deve a contenção de uma muito maior tragédia, o derrube de um gigante descontrolado.
Regresso
De partida, não vamos poder olhar o Funchal da mesma forma com que olhámos para a cidade três dias antes. Descobrimos uma cidade pelo desenho do fogo. A progressão das chamas revelou, afirmou, a estrutura natural do lugar, as montanhas e, sobretudo, as ribeiras, serpentes de vida. Foi pelas ribeiras
que o fogo progrediu, como se nessas vias de relação com a montanha estivesse escrita a mensagem de um necessário entendimento da Natureza. São as ribeiras que ligam as montanhas ao mar, são as ribeiras que continuarão a desenhar o território, a nele deixar a sua mais permanente marca.
Nota final sobre as fotografias.
Estas palavras decorrem de um trabalho de mapeamento fotográfico das áreas destruídas pelo fogo no município do Funchal. A fotografia joga um papel ambíguo na medida em que pode fazer imagens apelativas do horror. Não se trata de uma estetização da destruição, mas do fascínio que qualquer aspeto
da realidade visível pode exercer sobre quem a observa e, ocasionalmente, se liberta de condições morais decorrentes da vida em sociedade. Um registo desta natureza decorre inevitavelmente de opções, de apontar a câmara em determinada direção e não noutra, de excluir, consciente ou inconscientemente, elementos do campo de captura da imagem. Não há olhares neutros nem leituras objetivas, há aproximações a realidades múltiplas, complexas e esquivas. Na medida em que foram percorridos todos os espaço públicos afetados pelos incêndios, estas fotografias pretendem, por um lado, ser um documento extensivo do que foi destruído pelo fogo, por outro lado fixar a memória deste momento para que sobre situações futuras se possa intervir de modo mais preparado e esclarecido.
Duarte Belo, Agosto de 2016